terça-feira, 8 de outubro de 2013

Artigo: Aquela figura...

Newton Dias Passos

O cenário é a avenida L2 Sul, bem ali no comecinho, quase chegando à catedral. Hoje é mais um daqueles dias quentes de setembro, ar pesado, uma névoa tentando encobrir um sol causticante. As cigarras insistem em anunciar estridentemente mais uma primavera na capital, também marcada pela florada dos ipês. A natureza parece que se confundiu um pouco este ano. Vieram os ipês rosa, os brancos, os roxos. Os amarelos, que são os meus preferidos, chegaram um pouco mais tarde. Parece que os que estão bem perto do asfalto da avenida são uma resposta incendiária da natureza aos abusos do homem contra o meio ambiente...


Em meio a esse espetáculo da natureza ela surge. Desceu de um ônibus que veio de alguma cidade-satélite. Nem lhe cobram mais a passagem, ela faz parte do dia a dia dessa cansativa viagem que traz os trabalhadores para a cidade-monumento. Incorporou-se a todos que não estranham mais seus modos antigos, seu quê desajustado, sua maneira peculiar de ser e de agir.

Ninguém sabe seu nome, nem ousa lhe perguntar. Alta, magra, esguia, longos cabelos muito brancos, rosto envelhecido, cheio de marcas do tempo, olhar distante, sorriso desconhecido, séria, discreta nas atitudes, indiscreta no visual incomum. Sempre com um traje que não está na moda, ou que nunca esteve mesmo. Uma saia longa, meio clara, descombinada de uma blusa bordada, completando uma figura que apenas chama a atenção pelo inusitado. E sempre com uma bolsa antiga, gasta, pesada, repleta de livros.


Ela nem precisa dar o sinal: o motorista já sabe, chegou seu ponto. Ponto de quê? Para onde ela vai? Fazer o quê?

Atravessa o canteiro com uma elegância também comprometida pelo peso da bolsa ou pelo peso dos anos e vai buscar o seu destino. Naquela mesma sombra de uma árvore que ainda resiste à seca prolongada deste ano ela para e se assenta. Cuidadosamente estende um velho pano que trouxe de casa, encosta-se com uns restos de uma antiga elegância que ainda resistiu ao tempo, busca um livro, de preferência um dos maiores, e o abre. Folheia-o um pouco e se detém em uma página, que só ela sabe por que escolheu, e aparenta ler.


Nessa hora tem um ar às vezes grave, às vezes suave. Aperta os olhos como quem mergulha na história que lê, como se abduzida pelas páginas amarelecidas do livro. Ou pelas páginas amarelecidas de sua vida, que ninguém sabe como é, como foi, como será. E será que ela mesma sabe?


 Passa o dia, passam as pessoas, passam os carros, passam os ônibus, passa a Vida! E ela ali, na mesma pose, com os mesmos gestos, absorta, comprometida com a história que lê. Ou que não lê. Talvez com a história de sua vida que ela tenta descobrir naqueles livros que a acompanham desde sempre. 


Onde foi que ela perdeu o fio de sua meada? Onde foi que ela perdeu-se de si mesma? Nem mesmo ela o sabe. A única coisa que sabe é que todos os dias, de segunda a domingo, de janeiro a dezembro, ela precisa estar ali a postos, qual se fosse a guardiã de algo que nem ela mesma sabe o que é.


Uns dizem que foi bonita, elegante, que viveu e aconteceu. Outros dizem que é uma alma penada que ainda não entendeu que seu tempo aqui já não é mais seu. Outros dizem que ela foi uma professora, que ensinava, que aprendia para ensinar, mas que se cansou dos maus tratos com que, governo após governo, são tratados os professores neste país...


Daqui da minha janela eu a vejo mais uma vez e sua presença me incomoda. Alguma coisa ela deve ter a aprender ainda nesses seus livros que ela carrega como se fossem um tesouro. Alguma coisa ela ainda deve ter a ensinar a mim e a você. Ainda é tempo de sabermos.

Uma voz interior mais uma vez me diz que eu pense nisso...



"A personagem deste texto é uma professora "estilosa", que ficou louca e vive perambulando pelas ruas de Brasília. Devido a sua figura curiosa, brinco que ela é "minha musa", pois, como eu, está sempre cheia de papéis e livros. Na verdade, trata-se de uma incentivadora de leituras, já que está sempre lendo...

Conhecendo a história, Newton Passos, aluno do 4º Curso de Revisão de Textos, oferecido Pelo CETEB, resolveu homenageá-la.  Aliás, homenagem muito bem-merecida!"

Prof.ª Maria Teresa Brügger

Um comentário:

  1. Que texto lindo, poético e gostoso de ler.
    A trama da história,nos prende e de repente procuramos a foto da personagem descrita no texto, tamanho o número de detalhes da mesma.
    Sua alma de escritor estava inspirada ao ler esse texto.
    Parabéns!

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